Intimidade

No Brejo da Maré, cidade próxima à indústria dos Cravos, dois garotos, estes que nem de longe poderiam ser vistos como os demais, fugiam da entediante tarde que se apresentava como tal. A tarde de um dia em que tudo parecia atrasado, as miragens no asfalto, a secura da boca, os olhos ardentes, mas lá estavam eles, pés descalços, camisa sem mangas e vontades que para muitos poderiam parecer com meros desejos.
De olhos fechados e sem conseguirem se mexer. Nunca Tinham experimentado esta sensação, total inércia. Acostumados com dias menos longos, fizeram-se por esperar para saber o que realmente estava acontecendo, mesmo devagar, sentiam que o tempo estava passando e nada a fazer; mas o que esperar?
Sim, apenas esperar. Saber que o tempo passava, mesmo que devagar, mas que ninguém faria nada
O som vinha de um velho rádio que ficava em frente à cama da casa dos fundos de dona Amélia, uma mulher de cerca de seus, com certeza não saberia descrever quantos anos, talvez fossem poucos, mas apenas a vida lhe apresentassem mais, ou fossem muitos e ninguém fosse capaz de explicar o quanto eram, melhor não tentarmos adivinhar. O som melodioso e confortante, apesar de desconhecido para os garotos, era uma composição de Roberto Ribeiro. Levados pelo que ouviam, buscaram se levantar rapidamente, o que continuava a parecer impossível.
Apesar da intenção, podia se perceber que não queriam nada mais do que continuar ali deitados. Um céu avermelhado, fim de tarde, um momento. Os garotos lutavam hoje contra a sua falsa sensação de poder, sua falsa sensação de desejo, sua falsa sensação de escolha. Não havia tempo de pensar, de fazer, de olhar, não há tempo.
Seria aquele o momento exato de se cogitar algo, buscar a resposta de alguma coisa? Talvez fosse o momento de não se obstruir o curso dos fatos, aceitar que nada mudaria, que o que estava acontecendo ocorria por não haver outra forma de acontecer? Para que tanto questionamento diante de fatos tão bobos? Talvez fosse mais fácil levantar dali e esquecer aquele passar de dia, mas não, não há questionamentos, não há coisa alguma a se fazer. Como encarar uma realidade que até pouco parecia tão simples e que agora se faz tão complicada? Mais fácil retomar o rumo das coisas, fingir que nada disso está acontecendo, que todas as coisas são possíveis. Talvez sorrir um momento, agradecer novamente o copo de leite e voltar a dormir.
– Não. Vidas relacionadas a meras sensibilidades, sentimentos que negam a existência de forças capazes de gerar mudanças, talvez a desesperança gere o que conhecemos por comodismo, ou talvez gere o que conhecemos por vontade, vontade de sermos alguém, ou retornarmos ao momento em que fomos alguém, um momento de total encontro entre o homem e a sua natureza.
Não, não existiam argumentos que fizessem com que os garotos se levantassem. Não. Nem a recriação do mundo seria capaz de fazer com que os garotos retornassem a si. Talvez fosse mais fácil criar outro mundo, fugir.
Mas o ar esfria, a sensibilidade aflora, a necessidade do calor, a necessidade da proteção, tudo se intensifica com o passar do tempo, principalmente quando envoltos a proteções tão frágeis.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Enquanto encontro quatro letras

A sirene

Após o terceiro andar