A foto e a dedicatória

Há três dias eu esperava uma encomenda. Nada de especial, apenas uma nova edição “Do amor” de Stendhal. Quando menos esperava, ouvi as palmas. – É aqui que mora o senhor ... Antes que terminasse busquei confirmar o nome para que ele me entregasse o embrulho e onde assinar.
Entrei como esperasse há anos. Apesar de já ter cerca de cinco anos que eu esperasse aquela reedição. Cheio de cerimônia, separei um espaço à mesa. Primeiro analisei a etiqueta, realmente era meu nome. Abri com cuidado o papel que o envolvia. Antes de retirar o plástico, comecei a estranhar o volume, muito menor do que o de um livro. Abri-o. Para minha surpresa, uma moldura com uma foto e uma dedicatória. Olhei novamente o embrulho. Deve ter sido apenas um engano, uma mera troca de encomenda. Poderia simplesmente ser essa a explicação.
Na foto, uma moça. Cabelos rubros, olhos grandes, pele tão linda como se retocada a mão. Tão bela que esqueci as reclamações, dos cinco anos de espera.
De quem seria aquele rosto, para quem seria aquela foto, para quem seria a dedicatória realmente não me interessava. Enganei-me, tratei como fosse para mim. Retirei do embrulho e sobre a cômoda arrumei-a. Coloquei de frente para a cama. Todos os dias, ao acordar, encontraria o conforto em alguém.
No primeiro dia, acordei e não reparei na foto. Só percebi que havia me esquecido de percebê-la ao caminho do serviço. Chegando a casa, o descuido típico de quem está cansado, mal tive tempo de tirar as botas. É óbvio que aquilo era simplesmente porque ainda não havia me acostumado com a rotina de todos os dias procurá-la.
Três meses se passaram, e eu continuava com a correria do cotidiano e sempre a me esquecer. Uma hora lembraria.
Para ter certeza de que ao acordar eu buscaria a foto, levantei em meio ao escuro e mesmo sem enxergar peguei-a.
No dia seguinte, o primeiro ato, mais que impulsivo, foi levantar às pressas. Reparei a moldura em meu colo. Virei-a lentamente.
A foto não mais estava lá, apenas a dedicatória: “Guarda estes versos que escrevi chorando como um alívio a minha saudade, como um dever do meu amor; e quando houver em ti um eco de saudade, beija estes versos que escrevi chorando” (Do Amor).
Levantei-me, vesti a roupa. De minha tristeza sobrava a certeza, não pertencia a Stendhal.

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