A Flor e as Quatro Pontas

Como se entendesse que aquele fosse o último instante de sua vida procurava intensamente por algo que sabia que havia perdido, porém não conseguia lembrar. Se não lembrar, qual a importância? Qual a necessidade de se descontrolar por algo que nem mesmo merece ser lembrado. Sentada nas poucas ramas de cipó que ainda existiam na rua ela buscava entender o que fazia daquela busca algo tão insensato, tão sem nexo, posto que não se visse sinal de lembranças. – Não importa, disse ela, com a certeza de se procurar alguma importância, não precisava saber, apenas sentia e isso já era o bastante.
Como de relance sentiu algo passar do seu lado, se questionou se estava procurando alguém, mas com certeza não, uma pessoa deixaria lembranças tão significante que não poderiam ser esquecidas assim tão rápido. Novamente olhou, sentiu a sensação. – Sim estou procurando alguém, preciso apenas me lembrar de quem, se desconhecido ao menos alguma característica, cor dos olhos, formato do rosto, nada. Mais alguns minutos ali tentando lembrar-se de quem seria aquele vulto e quem seria essa pessoa que se escondera dela e que tanta importância tinha para ser lembrada, mas talvez não fosse uma pessoa a figura a se procurar.
Era tarde como em qualquer cidade de interior, aquelas em que os meninos correm atrás da bola, as meninas mais afastadas no quintal da casa brincam de elástico e a Dona Quitéria, como toda cidade há de ter, passando de um lado para o outro atrapalhando o jogo tão disputado. De um lado se escuta os cochichos de como seria a tática para os últimos instantes do jogo do outro a gozação por parte do time que sabia que de qualquer forma iria perder a partida. Mas que estranho conseguir prestar atenção em tantas coisas ao mesmo tempo, talvez a busca tão desesperada não fizesse sentido, talvez fosse hora de se juntar às outras meninas que naquele momento brincavam no quintal da casa de Dona Ana, senhora muito simples que não se casara por ter feito promessa que só amaria a um homem, que pena que nunca o encontrou, mas isso não a fazia uma senhora rancorosa ou cheia de reclamações, ao contrário, estava sempre cheia de boas intenções: era o pedaço de bolo que levava pra Dona Zefa, o copo de coalhada para a mãe do Juco ou até mesmo o quintal da casa para as meninas brincarem, visto que a rua estava ocupada pelos garotos. E naquele momento conseguia prestar atenção em todos aqueles detalhes, e a busca? A busca era incessante, não havia momento que não se sentisse acompanhada, mas não era uma simples companhia, até mesmo por que a rua estava cheia, era algo que conhecia muito bem e ao mesmo tempo não saberia dizer o que era.
Hora de atravessar e voltar para casa, afinal começava a esfriar e o jantar era sempre servido no mesmo horário em casa. Um aceno para Dona Ana, o momento de atrapalhar os meninos que agora brincavam de outra coisa, e estava ela próxima de sua casa. Casa muito simples, com cancela pra fechar o portão e sino na porta para pode se anunciar quem entra. Adentrando a sala sempre se lembrava de seu pai, talvez pela pintura do casal lado a lado que ficava na entrada e talvez por sentir um vazio, sentir uma falta de sonhos quando passava pelo umbral construído por ele mesmo pela falta de dinheiro que consumia as famílias naquele início de ano. Mais uma vez o ritual, a mesa estava posta, dois pratos, dois copos, os talheres, as duas cadeiras e dois lugares vazios que talvez um dia se preenchessem por alguma visita.
- Mamãe já havia colocado a comida na mesa e só esperava a minha chegada para começar a comer, era típico dela a espera, não sei se fazia muita diferença a minha presença na mesa, afinal fazíamos as refeições sempre em silêncio.
Aquela noite que se anunciava com a janta parecia normal, assim como as outras, porém novamente o vulto, o desespero, o prato de sopa vira sobre o braço:
- O que é isso minha filha? Preste mais atenção, de onde já se viu desperdiçar comida. Ande, vá, não quero mais ver sua cara por hoje.
O que poderia ter sido mais uma janta simples, tranqüilo e silencioso dava início à desconfiança, desconfiança de si mesma, não poderia estar imaginando e nem tão pouco mentindo para si. Na ida para o quarto, o desconforto e a tentativa de entender o que se passara naquele instante, mas talvez não fosse nada, e mais uma vez ela deitaria e esperaria o outro dia para conseguir entender alguma coisa.
No raiar do dia, assim como muitos conhecem, era hora de refazer a cama. Mal o dia amanhecia e era hora de colocar a casa em ordem, não iria pra escola, como sua mãe sempre lhe dizia: – menina prendada vale muito mais do que mulher estudada. Mesmo que talvez não concordasse, aceitava.
E mais um dia começava, o café da manhã muito rápido, algumas bolachas um pouco de café fraco e as tarefas de casa. Primeiro varrer o quintal, afinal a construção ao lado, a da casa do seu Ramiro, não terminava nunca e sempre acumulava muita poeira.
- Muito bom dia seu Ramiro!
- Bom dia, meu anjo. Sei que a construção está fazendo um grande peteco, mas não se preocupe, ainda esta semana hei de terminar, como você sabe resolvi aumentar o banheiro e mudar a porta da sala de lugar, não gosto que ela fique de frente para a rua, traz má sorte e ainda por cima todo mundo fica olhando aqui pra dentro, sabem o que faço ou deixo de fazer.
A conversa era sempre assim, para cada bom dia, várias linhas de monólogo, e o que ela poderia fazer? Talvez nada, continuava varrendo. Terminado o serviço vinha ela com o pano molhado e passava por toda área, o que para qualquer pessoa já estaria muito bom, para ela ainda não estava tão limpo, entrava novamente em casa e buscava a cera, joelhos no chão fazia do piso com toda a sua vermelhidão um espelho digno de pentear a mais nobre figura de sua casa, tudo isso para no dia seguinte dar bom dia a seu Ramiro, escutar desculpas sobre o término da construção e voltar o seus joelhos ao chão.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Enquanto encontro quatro letras

A sirene

Após o terceiro andar