Cravos, rosas e despedidas

Como em toda cidade de clima seco, o dia amanhecia frio, triste, um dia de despedidas. Velando o caixão estávamos eu, minha filha mais nova, uma dúzia de amigos e alguns familiares. Quem de longe olhasse certamente avistaria parte do seu rosto, as mãos sobrepostas, o vestido bege fechado e minhas mãos sobre sua fronte. O desejo de se entregar as vezes é maior do que as próprias lembranças, ou talvez aquele aumente pela intensidade destas. Foram dezoito anos, os mais belos e sublimes que ficariam gravados para sempre em minha trajetória.
As poucas mulheres que estavam ali decidiram se retirar, procurar um lugar que as acolhessem do frio e as amparassem de meus olhares. Não que fosse um olhar reprovador ou tão pouco um olhar de denúncia, ora, apenas a busca do pouco que restava de parte de mim naqueles últimos momentos. Minha filha resolvera sair, talvez já estivesse cansada, o sono. Para mim não fazia a menor diferença continuar ali ou procurar outros lugares, sempre ficaria a sensação de falta.
Claro que para entender a dor que eu sentia seria necessário viver algo de mesma intensidade, e isso jamais aconteceria. Os amigos diziam: “Casares, tiraste a sorte grande, jamais no mundo alguém irá saber o que foi ser tão feliz”. Não que eu fizesse questão de ser visto assim, mas em parte, havia muito de realidade.
Enfim, chegava o momento. O barulho das roldanas, o atrito com a corda, a terra escorregando para dentro, a cor da madeira, tudo naquele momento era desconfortante. Prometia naquele instante que todos o dia voltaria para visitá-la, não importava se chovesse, se tivesse compromisso, ou se me apaixonasse, eu sempre iria visitá-la.
Saímos todos rumo a capela, o último lugar que voltaria a encontrar aquelas pessoas, nos despedimos e sorrateiramente segui rumo ao carro, minha filha nos braços, os olhos cerceados de medo e pranto, assim voltava eu a realidade.
No dia seguinte acordei cedo, preparei o café para as meninas, era uma tentativa de rotina, e segui para o cemitério. Na entrada, lembrei-me das flores, os cravos que tanto eu sempre admirei. Agasalho fechado, o vento sorrateiro e as flores na mão. De longe eu conseguia ver o branco do mármore e a pequena lápide onde está uma foto nossa feita na última vez que fomos ao Corcovado. Aproximei-me, apesar de já conseguir ver de longe sua cor e não conseguir entender. Apanhei-as nas mãos, eram rosas vermelhas. Pensei que talvez tivessem sido colocadas ali no dia anterior, mas logo me convenci que não, pois a coroa de flores não estava mais lá, assim como todas as pétalas e botões colocadas. Afastei, olhei ao redor e nada. Fiquei ali os poucos minutos que podia, conversamos e fui para o trabalho.
No dia seguinte, lá estava eu. Acordei bem cedo, preparei o café, passei na floricultura e fui para o cemitério. Para o meu espanto, não estavam mais minhas flores, lembranças do dia anterior também não, mas havia um novo ramalhete de rosas vermelhas, bastante vivas. Não sei explicar tal sentimento que senti, a dor que todos diziam ser meramente psicológica tornou-se física, o aperto por dentro, as mãos frias, um tremor em todo corpo, quem colocara tais rosas, me questionava. Voltei para casa, liguei para os amigos, liguei para os parentes, ninguém tinha ido ao cemitério.
A dúvida, a incerteza dos momentos.
Assim se passaram três anos da minha vida, chegava ao cemitério e próximo às rosas, colocava meus cravos.

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