A poltrona ao lado


“Não é natural, porque há regras para beijar,
há sentido no beijar, há civilização no beijar.
Há pecado para tudo,
mas ainda é natural pela preparação
automática do corpo para a coabitação.
É quase uma lembrança de alguma coisa,
é quase uma tentativa de fugir, é quase um retorno”
(M.P)


As ruas mineiras eram o mais belo cenário em que a magia poderia se fazer acontecer. Luzes opacas, a proximidade do céu e uma abóbada desenhada como plano de fundo para uma ação digna das peças de Racine. Uma verdadeira beleza imaterial.
Como esperei aquele momento, a perfeição, o jogo fiel entre a vida e a expectativa. Os sentidos aguçados são sinal de mudança, e eu em breve me tornaria um momento.
Ali eu o esperava. Seu vulto começava a se formar entre as árvores, se aproximou de mim e como não me conhecesse lançou-se.
Como foi diferente! Fui atirada contra a minha vontade à lama e de lá recuando era repelida e cruelmente me lançava aos seus braços. O momento torpe de quem pela primeira vez deixava de observar, ouvir, e se lançava ao encontro de um desejo real. Seu toque me enaltecia. O tocar de pele, as mãos que correm por um rosto e encontram marcas do tempo, esse que me mostrava o momento exato de tudo o que eu não queria. Talvez não o ato em si se fizesse necessário para eu descobrir que todos aqueles anos eu apenas tocava o mundo com os lábios, não o sentia.
O toque leve, o gosto, o encontrar de vontades, a sensibilidade aflorando. Experimentava, talvez, eu a sensação que muitos outros já sentiram em circunstâncias menos agradáveis.
Com que gosto? Com nenhum, com nojo, com tristeza.
– O beijo tem gosto de traição.
O que diriam os apaixonados que diante do calor da alma se entregam um ao outro sem pesarem o momento? Esses talvez descrevessem o sabor do medo, da imprecisão. Não conhecem um no outro a fragilidade, se fazem fortes. Sentem o momento se esvaecer, sabem do tempo, sabem como tornar eterno um momento de realização que aos poucos se esvai.
Incompreensíveis são as sensações, não os atos. O beijo causa imagens, imagens aos infiéis que se entregam a rostos escondidos por trás de lábios que não condizem com os imaginários. Imagens que negamos, imagens que nego e aceito quando fecho os olhos para negar não só a existência do outro, como também a minha.

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