Antes dos dois-pontos

Há que se admirar o seu belo trabalho. Em plena madrugada, cansada da forma de arrumar sua sala, buscava algo que a satisfizesse. A necessidade de reorganizar os móveis, talvez a moldura do quadro, a cor das paredes, talvez a forma dos protetores das lâmpadas. Tudo fazia com que acreditasse que algo poderia ser feito, e acredite, não era a primeira vez que ela fazia aquilo.
Sentou à janela, pensou, imaginou as outras, ou as infinitas formas, de arrumar sua sala e decidiu deixar como estava. Talvez porque já fosse tarde, afinal, passava das 3, ou talvez por saber que não conseguiria arrastar tantos móveis, pintar todas as paredes ou quem sabe desproteger a luz. Segurou por um momento a quina da mesa, puxou para próxima de si, traçou alguns rabiscos, e ali imaginou como bela ficaria sua sala, novamente, achou melhor deixar apenas no papel, como ela mesma costumava dizer: - o real nunca sai como planejamos. Como isso seria possível? Como imaginar algo que não pode ser real? Como construir algo que seja apenas idéia? Sim ela conseguia isso.
Fazia um mês que ela morava naquele novo apartamento, cerca de 200 m², frente para a lagoa, janelas amplas, bem arejado. Um mês, e já possuía cerca de 40 projetos de reformulação do lugar. Não que não acreditasse que fosse válida as suas idéias, apenas sabia que elas se cumpriam em um outro plano. O que de certa forma ela estava correta, mas mesmo assim não possuía muita utilidade.
Como de costume, cansada, resolveu ir dormir direto, preferiu não tomar banho, afinal tinha se banhado para ir para a academia, que acabou desistindo de ir. Escovou os dentes, tirou os óculos e como de costume dormiu com o rosto voltado para o travesseiro. Não era necessário muito tempo para que adormecesse, era natural, não necessitava de remédio, apenas um belo dia de trabalho. Para compreender os motivos de tamanho cansaço talvez devêssemos voltar algumas horas de seu dia, com isso entenderíamos melhor tamanha necessidade de aproximação de um outro mundo.
Como de costume, acordava às 6:40, era sempre a mesma música, uma antiga canção dos Beatles que tinha gravado no celular. Sempre colocava no modo para tocar novamente alguns minutos depois, só para ter a sensação de domínio sobre a própria vida, ou sobre o tempo. Quando da segunda vez, desligava o despertar do telefone, tirava a coberta para o lado, descobrindo as pernas, e calmamente se colocava a procurar as sandálias. Levantava-se e ia direto para a o quarto, não tinha o costume de tomar café da manhã, preferia deixar para comer alguma coisa mais tarde, por volta das 10. Arrumava-se, pegava a pasta que normalmente deixava arrumada de um dia para o outro, e saia. Nunca encontrava alguém no elevador, era costume descer sozinha e na maioria das vezes não perceber que o seu Alfredo estava assistindo o jornal da manhã em sua televisãozinha portátil. Caminhava sempre da mesma forma para o carro, descia as escadas que ficavam na frente do extintor, passava pela rampa onde as pessoas subiam com os carrinhos de compras e se aproximava do seu carro. Com a mão direita tirava as chaves do carro, desligava o alarme e seguia rumo ao centro.
Costumava dirigir na faixa do meio, não gostava de preocupações, não gostava de dar setas, se incomodava com a obrigação de ficar ultrapassando as pessoas; seguia, assim, seu rumo. Chegava impreterivelmente às 8 no serviço. Estacionava o carro embaixo da mangueira que costumava dar sombra na parte da tarde, e seguia à sua sala. Com a mão direita abria a porta da sala, com a mão direita fechava a porta da sala. Colocava a pasta em cima da cadeira, mesmo que soubesse que teria que tirar para sentar, e ia para a janela abrir a persiana. Voltava, tirava a pasta, colocava-a sobre sua mesa, tirava alguns papéis e dava início à sua maratona.

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